A virtude epistemológica
por Louis-José LESTOCART
Doutor pela Universidade de Paris VIII, crítico de arte da revista Art Press
No final dos anos 70, por influências tanto filosóficas como sociológicas, nasce a idéia de uma arte em “espaço compartilhado” que pede a participação real do público. Em 1977, Kit Galloway e Sherrie Rabinowitz, fundadores do Électronique Café International, conduzem experiências de dança interativa com satélites (a única maneira, naquela época, de transmitir imagens além dos oceanos) por acoplamentos de imagens de vídeo. Esta possibilidade que se abria como uma janela para o mundo e permitia transmitir um evento ao vivo para uma infinidade de pessoas, o pioneiro de uma Arte Sociológica (1974) e de uma Estética da Comunicação com Mario Costa (1983), Fred Forest já a havia instaurado desde 1972 ao fazer experiências através do telefone, o primeiro meio de comunicação de massa. Forest recorrerá frequentemente ao telefone (Le Capitole [O Capitólio], 1972; Sculpture téléphonique planétaire [Escultura telefônica planetária],1985; Le Robinet téléphonique ou comment remplir un réservoir par téléphone [A Torneira Telefônica ou Como Encher Um Tanque Por Telefone], 1992). O que é normal para um antigo agente dos correios e telecomunicações que encontrou em seu trabalho um conhecimento intuitivo e íntimo das redes.
Usando as redes urbanas e interurbanas, assim como as secretárias eletrônicas, ele construiu, no final dos anos 60, uma arte nova, uma arte da comunicação, tentando fazê-la assimilar as formas e a lógica dos mass media. Uma arte construída sobre a Teoria da Informação de C. Shannon e W. Weaver, segundo sua obra Teoria matemática da comunicação (1949). Como para os artistas americanos, esta teoria da informação só existe para dar maior destaque a tudo que releva de incerteza. Trata-se sobretudo de extrair o “barulho” (ondas que impedem a boa recepção das imagens/sinais) da informação e, por extensão, tudo o que pode parasitá-la, incomodá-la na sua intenção em fazer sentido: ou seja, uma grande quantidade de informações. Ao mesmo tempo, ele se volta à imagem de vídeo (contra a televisão), mas de uma maneira diferente da escola americana da mesma época; longe das décollages-décodages de Nam June Paik e Wolf Wostell (anos 60), das machine vision de Steina e Woody Vasulka, aproximando-se mais dos dispositivos epistemológico-sociais de Peter Campus e Dan Graham (anos 70), registros de autoscopia e de auto-percepção (Self-regulating Dynamic Field).
Em Auto-percepção eletrônica (1974), Forest parece tomar este mesmo caminho. Com um misto de sobriedade e ironia, ele persegue uma impiedosa exploração do cotidiano. Mas onde Campus e, sobretudo, Graham utilizaram o circuito fechado de vídeo e se interessaram mais aos fenômenos da percepção à construção da personalidade e aos mecanismos do corpo e do pensamento, a operação Arqueologia do presente (1973), ao colocar de maneira contínua uma rua inteira sob o olho das câmeras de vídeo – aqui também em circuito fechado – busca a “imprevisibilidade” do cotidiano. Encontra-se aqui um fator emocional e de fascinação muito forte (presente também no estudo dos Gestos em profissões e relações sociais com, entre outros, os do “professor” Vilém Flusser, realizado entre 1972 e 1974). Onde Graham cria situações de abismo entre o público e o privado, o interno e o externo, que, enquanto denunciam os processos de controle, de observação, até mesmo de condicionamento, engendram um sentimento de armadilha, de choque que inspira como reação uma manobra rápida de atenção, um sobressalto, uma revolta de caráter ontológico. Forest, por seu lado, convida à uma reflexão mais moral, até mesmo ética, sobre nossa relação com o tempo – culminando em Aqui e agora (1983), vídeo-instalação que mostra jogos entre transmissões ao vivo e pré-gravadas, através das imagens de um sistema de relação em tempo real juxtapondo a realidade física da rua à sua “representação catódica reconstruída” na galeria da rua Guénégaud (Archéologiae do presente). Ele pede também a criatividade do público, convidando-o a participar através de suas reações à produção da obra. Os visitantes que entram na galeria da rua Guénégaud têm a grande surpresa de perceber que eles já estão ali. E que passaram da vida cotidiana para o estatuto pouco confortável de representação. Escorrega-se continuamente de uma realidade a outra, e as duas são estranhamente semelhantes.
A pesquisa sobre tempo-real, tempo do pensamento (e, portanto, da interpretação e da cognição), tempo objetivo e consciente da experiência, Forest a conduzirá como um agitador. Daí sua presença permanente tanto dentro como ao lado de suas obras. Ele mesmo se torna uma derradeira cobaia. Sobre Forest, Frank Popper declara que ele é mestre em “criar micro-eventos de comunicação que permitem o estabelecimento de uma circulação da informação por uma intervenção direta sobre o meio”. Desde então, sua arte se define por intervenções construídas em função dos mecanismos de produção do valor artístico e comercial. Sofisticação extrema ou desconstrução e reinvestimento desses mecanismos? Eles utilizam sucessivamente : imprensa escrita, telefone, fax, vídeo, rádio, televisão, computador, painéis eletrônicos, redes telemáticas e novas tecnologias. Todas estas questões do dispositivo, da participação ou da interatividade precedem e anunciam a arte na web. A internet é de fato rapidamente reinvestida pelo artista como lugar e espaço virtuais por excelência para se colocar em relação os indivíduos que ali transitam. Parcelle/Réseau [Parcela/Rede], obra digital colocada à venda no Hotel Drouot, 1996; Centro do Mundo, instalação interativa na internet apresentada no Espaço Pierre Cardin em Paris, 1999; Cor Rede ou a arte de vender monocromos digitais – bem imateriais ! - como objetos de arte, na sala Drouot-Montaigne, 2000; o Tecno casamento, que acontece também na internet e utiliza técnicas de “realidade aumentada”. Essas manifestações de “arte sociológica”, visando a uma desestabilização cultural, são talvez também uma “busca sem imagem’ (bem pequeno, colocar o depoimento da Aracy Amaral por aqui numa Box da invasão do branco. repetir no texto em francês; estará sinalizado p/ ti:
O Som é Você : Minha experiência com Fred Forest
Fred Forest fez mais de uma viagem ao Brasil em inícios dos anos 70. Com seu companheiro Hervé Fischer realizava “art sociologique”, através de intervenções e performances, num período de grande efervescência conceitual entre nós.
Em 1973 – coincidentemente mesmo ano em que realizei a curadoria de “ExpoProjeção73”, primeira apresentação coletiva de artistas brasileiros trabalhando com novos media, evento que se prolongou por vários dias e causou grande impacto no meio artístico, Fred Forest esteve entre nós.
À época eu tinha diariamente um programa matinal na Jovem Pan – “Vamos falar de arte?” que abordava exposições, fazia crítica a artistas e comentarios sobre arte em geral. Veio então a idéia de realizar com Fred Forest um evento inédito que, sugerido à direção da Jovem Pan, a Antonio Augusto Machado de Carvalho, teve excelente acolhida.
Foi intitulado de “O som é você” e constou do seguinte: devidamente anunciado, durante um dia inteiro a Radio colocou à disposição do ouvinte que quisesse, através de um numero telefônico especial, 3 minutos para que a pessoa dissesse, falasse, tocasse, fizesse o ruído que desejasse. Foram recolhidos dezenas e dezenas de intervenções, nem lembro mais quantos ! (gente tocando piano, dizendo palavrão, falando contra o governo – e estávamos na ditadura !– recitando poemas seus ou de outros, simplesmente falando coisas sem nexo, produzindo os sons mais variados, inclusive som de enceradeira (este caso foi de minha empregada. Quando cheguei em casa ela me disse: “Sabia que também participei da Jovem Pan ?” Eu perguntei: “Mas como?”Ela disse: “Liguei a enceradeira, disquei o numero, e aproximei a enceradeira do telefone!” E estava muito encantada com seu feito!)
Depois editamos as diversas intervenções que foram levadas ao ar no dia seguinte na Jovem Pan, sempre devidamente anunciado o resultado do projeto
“O som é você”. Achei o máximo a Jovem Pan ter nos aberto esse espaço. E foi um sucesso de público a iniciativa. E um barato.
Pouco vi Fred Forest depois. Uma vez, em Paris, eu entrava no metrô, e encontrei-o casualmente... e falamo-nos rapidamente.
Aracy Amaral
S.Paulo março 2006 )
tais como espaços em jornais (publicação no Le Monde de um espaço retangular branco, intitulado Título da obra 150 cm2 de papel jornal, em 1972; ou a última página do Libération, com a menção “Certificado de artista” e transformada em espaço artístico, em 1979). Reivindicação crua de uma persona artística que reencontramos na exposição de Madame Soleil em carne e osso (1975) ; na busca, entre quase toda a população de uma cidade, de uma mulher desconhecida e quase impossível de encontrar (Aviso de busca: Julia Margaret Cameron, 1988); em um desfile de pessoas carregando cartazes brancos (na XIIª Bienal de São Paulo, 1973), ou um “território” virtual avant la lettre (o grande evento Metro quadrado artístico, denominado “obra-informação” crítica, envolvendo imprensa escrita, rádio e TV e vendendo a colecionadores parcelas do lugar artístico); até o Território do metro quadrado, desta vez real, em Anserville (1980), concebido como um lugar físico de trocas interativas, sempre segundo a noção de rede de comunicação vista como evento irredutível. Através desta reivindicação sociológica, manifesta-se também um apelo ao imaginário. Este recurso à onipresença do espetáculo midiático, jogo dentro do jogo por ele instaurado, torna-se uma mistificação suplementar dentro de um vasto empreendimento de demistificação. É antes de tudo uma homenagem à imaginação, que continua sendo fluxo incontrolável.
Nos anos 90, um outro patamar é alcançado nas artes, rumo a uma espacialidade “aumentada” e uma “criação compartilhada” em escala planetária. É a idéia de uma criação coletiva e efetiva generalizada que mergulha a consciência na espacialidade material e comunicacional, buscando exaltar a interação sujeito/corpo/sociedade. Roy Ascott, artista e teórico da arte telemática, retransmite imagens da terra acessíveis de modo interativo em diversos pontos do mundo (Aspects of Gaia, 1989). Don Foresta e seu projeto Artistas em rede (1992) instauram processos interativos por computador entre escolas de arte e artistas independentes para pesquisar novos modos e linguagens de comunicação à distância. Em uma visão utópica, troca e diálogo de culturas são feitos em tempo real. Mudando assim a noção de espaço-tempo, ligando artistas e homens em qualquer ponto do mundo. Em 1993, Forest, em uma acepção mais diretamente inspirada pelo humanitarismo, utiliza a rede telefônica internacional, manda instalar três postos de observação [les miradors] com alto-falantes perto da fronteira eslovena, mobilizando para este evento uma ação da imprensa internacional, várias rádios e televisões, e tenta implantar “ondas positivas”, “partículas de amor e de paz”, ao lado de uma ex-Iugoslávia em guerra, com Les Miradors de la Paix [Os « Miradors » da Paz].
Às vezes o artista inflama-se em uma crítica irônica, até mesmo severa ou violenta, contra os representantes do poder político, cultural e a burocracia, através de provocações, intervenções e atos resultando em uma reflexão sociológica e uma forma de desestabilização. Como Duchamp, o artista preconiza fazer arte sem de fato fazê-la, e pretende ocupar territórios que a priori não são artísticos. Destes territórios, ele quer captar os limites e as possibilidades remanescentes. Mas não sem uma mecânica artesanal e artística próxima de uma estratégia de comunicação revelando intenções bastante perturbadoras. Mas Forest quer sobretudo denunciar o “vazio” do mesmo modo que havia conseguido obter “sessenta segundos de branco” no meio de um jornal televisivo. O vazio. O vazio exasperador. Face a esse vazio, nenhuma indulgência. Apenas tensão. No fundo, atacando as instituições em Fonctionnements et dysfonctionnements de l'art contemporain: un procès pour l'exemple [funcionamentos e disfuncionamentos da arte contemporênea : um processo para o exemplo] (l'Harmattan, 2000), ele ataca também, como outros artistas, o “para-artístico”, a esfera dos intermediários do mundo das artes (diretores de museu, críticos de arte, galeristas, conselheiros culturais, etc.) que de uma certa maneira acabaram por tomar o lugar do artístico, e se revelam sem imaginação. Por que esses intermediários – que são apenas intermediários – se arrogariam o direito de pensar que são eles que “fazem a arte”, decidindo o que é arte ou não. Além da simples provocação, Forest, preconizando uma certa “higiene da arte”, presente, lúcido, resiste, recusa-se a se deixar esmagar em simulacros e trava principalmente um debate crítico sobre a arte e seu sentido.
^ |